Ruído de Fundo

Há uns anos, não muito longe do ponto onde nos encontramos, era fácil e frequente ficarmos indiferentes às notícias que vinham de lá longe, fora do continente a que chamamos Europa e nosso. Ouvíamos as notícias de tumultos, revoltas surdas, fantásticas. Depois olhávamos para o lado e dizíamos “Maria, o gato já comeu hoje?” ou “Quim, bebes a cerveja com tremoços?” Era lá longe. Era gente que não conhecíamos. As notícias não explicavam porquê, não se interrogavam interrogando-nos, e aquilo era mais uma cena de um filme qualquer que no dia seguinte se desvaneceria da nossa ideia como um sopro ou uma lágrima. Na melhor das hipóteses, se fosse assim uma desgraça bem grande, vá… umas duas semanas. Talvez tanto como um penálti que ficou por marcar contra o Benfica.

Mas hoje, volvidos todos estes anos, vemos desenrolar um inexplicável ror de acontecimentos que, já com algum espanto, tem lugar às nossas portas. Na Grécia, na Espanha e, mais recentemente,  na Inglaterra e em Israel. Mas antes tinha havido em França, e por entremeio, a Primavera Árabe. Povos díspares, situações incomparáveis, dirão uns. No entanto, partilham todos do mesmo alicerce: desigualdade.

Simplisticamente, poderíamos ser levados na famosíssima lenga-lenga do “racismo” e do multiculturalismo que, supostamente, está na génese dos conflitos na Europa. Mas a realidade é bem diferente. A realidade é que o sistema baseado em dívida e que norteia as nossas vidas, fracassou. E o que se vai vendo são os sinais óbvios de uma desigualdade entre classes sociais e não raciais. Sinais que seriam luminosos se a nossa imprensa fizesse a sua função: conscientizar informando. Um império, civilização, grupo grande de pessoas, em que se criem cisões tão demarcadas como as que existem presentemente na nossa sociedade só pode ter um resultado: fracasso. Quando uns têm tudo, não só em termos materiais, mas em termos de liberdade de exercer poder sobre os outros, e esses outros não têm nada, ou se têm pouco mais do que isso vêem-se privados das suas migalhas, o rastilho está montado. Adicione-se a isso a incompetência e a falta de vergonha dos bananas que são mandados para mandar, e o rastilho acende-se. Quando um império, civilização, grupo grande de pessoas, acolhe no seu seio pessoas diferentes, com ideias, credos, esperanças, necessidades diferentes e não as trata como iguais, o resultado só pode ser um: fracasso. Mas o primeiro sinal vem das instituições que detêm o maior dos poderes, o poder de construir a sociedade mostrando a verdade e apontando o que está mal, ou seja, os meios de comunicação. Quando é notícia o facto de um jornal ousar explicar o motivo destes recentes tumultos, revoltas surdas, fantásticas, pouco há a dizer relativamente à gravidade da situação.


* Imprensa francesa explica motins com o crescente fosso entre ricos e pobres

* Violência em Londres espelha relação tensa entre a polícia e a comunidade negra


O jornalismo transforma-se em propaganda quando serve apenas para manter as pessoas agrilhoadas e ignorantes na sua infantil felicidade, ao invés de dar murros na mesa, de denunciar, de explicar, de acordar. No tempo dos Romanos, na Alemanha Nazi, na Guerra Fria, a propaganda servia para manter ditadores. Nos tempos que correm, os ditadores não têm um rosto. Não têm um nome. Não nos trespassam com lanças ou balas. Para eles, basta-lhes o poder de fazer com que alguém carregue no botão de uma impressora de moeda. O efeito não é tão sangrento e óbvio, mas é igualmente destruidor e escravizante.

Hoje a desigualdade trouxe a preocupação à nossa porta. Já não são só os outros lá longe que correm risco de perder muita coisa. Contudo, se os meios de comunicação não se dedicassem a emitir na sua maioria ruído de fundo, talvez estivéssemos mais bem preparados para enfrentar a tormenta e a dúvida.

Posted on 11/08/2011, in Artigos. Bookmark the permalink. 12 comentários.

  1. Ai agora também escreves, fraga? Muito bem… Queria deixar uma pequena contribuição ao teu artigo pois que, embora não muito informativo, descreve uma posição na qual eu me revejo.

    Dos filósofos que mais aprecio é, sem margem para dúvida, Platão. Em 400 AEC, sob o governo dos Trinta Tiranos, ele emite o seguinte reparo:

    “Nenhum Estado, por melhor que sejam as suas leis, poderá durar muito tempo, se os seus cidadãos se entregam à ociosidade e se persuadem de que não há verdadeiro gozo da vida senão na satisfação dos prazeres (…). Tais Estados nunca terão uma forma estável. Hoje sob tirania, amanhã sob oligarquia, depois sob democracia, os seus governantes nunca suportarão ouvir falar num regime de igualdade e de justiça” (PLATÃO – Carta Sétima. Porto: Livraria Educação Nacional, 1941. p.20.)

    Creio que esta frase com 2400 anos seria perfeitamente enxertável nos primeiros parágrafos deste teu artigo. O desinteresse das pessoas que antecedeu a actual crise permitiu que ela viesse a acontecer, pois deixou uma grande margem de manobra àqueles que aspiravam ao esbulho. Quando os primeiros sintomas se fizeram sentir, a inadvertência foi fatal.

    Para concluir esta minha (muito) modesta intervenção, retomo as palavras de Platão:

    “Fiz profundas reflexões sobre os homens que se dedicaram à política, sobre as leis, sobre os costumes, e, à medida que fui avançando na idade, adquiri a triste convicção de que obstáculos quase invencíveis se opunham a um bom governo em Atenas” (PLATÃO – Carta Sétima. Porto: Livraria Educação Nacional, 1941. p.17-18.)

  2. Pegando na onda deixada pelo Hephem:
    “Um acentuar das desigualdades entre ricos e pobres é a mais antiga e fatal doença de todas as Repúblicas.” – Plutarco

    Quase tudo o que estamos a assistir hoje nos nossos dias já aconteceu na História, é quase uma repetição, um ciclo, com as devidas diferenças temporais mas as mesmas semelhanças centrais.
    Vivemos numa sociedade tão cega no futuro que se esquece e se esqueceu muito rapidamente dos ensinamentos do nosso passado.
    O que vivemos hoje só terá um desfecho possível, assim se repita a História, revoltas, revoluções, mágoas e prisões…

  3. Existe sempre duas opções, dois caminhos.

    O inicio do fim do estado de bem estar social e das constituições que assim o dizem está a pleno vapor, abra a janela e me diga o que você ve.

    Revoltas e revoluções nos remeteriam a um mundo de nacionalismo exacerbado, resumindo, nos remeteriam a um passado recente, esse sim muito conhecido por alguns que ainda vivem.

    O que precisamos é de um mundo com pessoas mais educadas(formalmente), dobrar os investimentos em educação, ensinar as novas gerações a terem maior resposabilidade social, serem menos consumistas e mais ativos na vida política, então quando isso ocorrer prover a reforma ao sistema, uma reforma sustentavel.

    Se permitirmos a volta do nacionalismo, mesmo daqui a 200 anos, teremos um mundo ainda mais racista e territorial, onde cada vez mais se valoriza a pessoa não pelo que ela é mas sim pelo pedaço de terra onde ela nasce.

    • Boas Cidadão.

      Acho que ninguém neste espaço, desde o texto do fragha, até às respostas aqui presentes, estão a defender uma revolta, ou revolução, ou lá o que possa ser comparável a isso… nem as acções tomadas por lá, Inglaterra, foram, ou são por aqui defendidas.
      Aqui há uma crítica implícita à forma como os meios de comunicação social, dependendo do lado da história que contam, ou do ocidente, ou do oriente, conotam determinadas acções ou movimentos. Há uma crítica social a como estas nossas sociedades evoluíram na direcção da exclusão social, do aumentar das desigualdades sociais e da cegueira em relação ao que a História nos conta quando tal caminho é tomado pelas sociedades… essa mesma História que tão bem referes e que devia estar tão fresca na memória de todos… pelo menos dos portugueses!

      Existem sempre vários caminhos que podem ser tomados, e é melhor esperar sempre pelo melhor, mas isso são casos raros, e infelizmente conta-nos a História que quando os pobres já nada mais têm a perder normalmente a única coisa que lhe sobra para perder é a cabeça… e então depois esses pobres rapidamente passam de simples pobres excluídos para vândalos, marginais, assassinos, terroristas, e por vezes, e consoante o decorrer da sua história e a conotação dada pelos meios de informação, libertadores…

      Quando o Homem se esquece da sua própria História e dos seus erros próprios, abre caminho à mesma história e aos mesmo tipo de evitáveis erros…

      Um abraço,

      minhamosca

      • Ontem esqueci-me de associar à minha resposta uma notícia que guardo religiosamente há mais de 4 anos. É daquelas notícias que nos prepara o futuro, que já é visível neste presente, com anos de antecedência e pela voz da mais elevada hierarquia do Ministério de Defesa britânico:
        http://www.guardian.co.uk/science/2007/apr/09/frontpagenews.news

        Entre outras coisas:
        “A classe média irá tornar-se revolucionária, assumindo o papel do proletariado de Markx, afirma o relatório. A tese baseia-se num alargar das desigualdades entre a classe média e os super ricos, por um lado, e a classe pobre urbana, o que ameaça a ordem social, «A classe média pelo mundo poderá vir a unir-se, usando o acesso ao conhecimento, recursos e habilidades para moldar processos transnacionais no interesse da sua classe». […] «Flashmobs» – grupos mobilizados por gangs de criminosos, ou grupos terroristas.”

        Convém escrever que esta visão do futuro foi desenvolvida quando a economia mundial ia de vento em popa… pelo menos era isso que a maioria dos Zé Povinhos pensava, e o que as elites nos desejavam fazer querer.
        O que está a acontecer é uma surpresa? Surpresa será apenas para os que se fiam no cor-de-rosa constante dos meios de comunicação social, pois para os mandantes isto é apenas o consolidar de algo que já esperam que viesse a acontecer.
        Abre lugar a uma questão:
        Se estavam a par do que poderia vir a acontecer, por que razão nada fizeram para o evitar???

        Como alguns poderão achar que esta notícia sobre o qual estou a basear este meu pequeno texto poderá ser apenas um acaso de «sorte», eis o que nos diz sobre o tema a Bundeswehr – a mais elevada hierarquia militar na Alemanha, neste caso em Setembro de 2010:
        http://www.spiegel.de/international/germany/0,1518,715138,00.html

        Entre outras coisas:
        “O estudo da Bundeswehr também levanta o receio da sobrevivência da própria democracia. Parte das população poderão perceber as sublevações originadas pelo Pico do Petróleo como «uma crise sistémica generalizada». Isto poderá criar «espaço para alternativas ideológicas extremistas às formas existentes de governo». É provável que ocorra uma fragmentação da população afectada o que poderá «em casos extremos levar até conflitos abertos».”

        O somatório disto levanta mais uma questão:
        Por que razão as elites que definem as estratégias dos países em questão, neste caso “apenas” a Alemanha e a Inglaterra, estão a deixar que as visões de futuro apresentadas pelos seus relatórios de segurança para o futuro se tornem realidade sem que nada seja feito para tentar estancar essas negras visões do nosso mundo?!?!?

        O futuro é construído sobre a cegueira daqueles que preferem não ver o que os outros que o preparam já vêem…

        minhamosca

  4. Obrigado pelos comentários.

    Para dar um exemplo (caso ele seja preciso) de um acto de propaganda disfarçado de notícia jornalística, consulte-se o seguinte link:
    http://economia.publico.pt/Noticia/factura-media-de-electricidade-e-gas-sobe-11-euros_1507405

    Diz-se que o IVA vai subir e compara-se os IVA de vários países europeus. Tudo muito bem. E onde é que está o mais importante, que é dizer que esses países têm níveis de vida muito superiores aos que se verificam em Portugal, onde o rendimento médio nem sequer é comparável? A ideia que se passa no artigo tal como está, e a ideia que se passaria caso houvesse preocupação em educar (sim, porque os jornais defendem que a sua função é informar, mas esquecem-se que para informar há que informar a 100% e não apenas pela metade), são totalmente diferentes.

    As revoltas e consequentes nacionalismos surgem por variadíssimos motivos, porém, que não haja dúvida que uma multidão revoltada mas informada e consciente é muito diferente de uma multidão simplesmente revoltada. A primeira sabe as respostas às perguntas “Porquê?” , “Como?” e “Que fazer?”, a segunda limita-se a pilhar, matar e destruir, e, por fim, a adoptar uma visão de separação em vez de união.

    Como nota final, os artigos pessoais do minhamOsca são para reflexão sobre temas e opiniões lançadas pelos seus autores. Para artigos de informação existem as notícias do dia, onde se pretende fazer uma triagem baseada em fontes oficiais de modo a construir um mosaico que sirva de contraditório e de muleta à formação de uma ideia mais próxima da realidade actual.

  5. Para alguns posso parecer elitista com a resposta que me apresto a fazer, mas fala-ei malogrado isso. Talvez essa sensação se desfaça no fim do comentário… Eu penso que a maioria das manifestações, revoltas, motins e revoluções são ilegítimas. A sua pretensa ilegitimidade assenta no seguinte factor: ninguém são de espirito e realmente justo tem o direito de aspirar beneficiar de mais direitos do que os deveres que realmente assumiu. Se assim acontecer, ter-se-á então constituído uma corrente em sentido único, em consequência da qual outro alguém com deveres equivalentes tenderá a beneficiar de menos direitos do que aquele. Permitam-me que ilustre o que pretendo dizer, com um exemplo simples: para beneficiar do direito ao conforto de uma cadeira, tivemos antes que exercer o dever de a fazer. Se beneficiamos do seu conforto e não a fizemos, foi porque alguém a fez por nós sem contudo poder desfrutar da sua realização…

    Dito isto, a maioria das pessoas recusou o dever-responsabilidade que tinha de se preocupar com os assuntos e problemas da “cidade”, relegando essa tarefa exclusivamente ao patriarca da nação. É nestas circunstâncias que, sem grande surpresa, encontramos as nações culturalmente mais atrasadas com os governos mais corruptos, com as maiores desigualdades e as economias mais frágeis.

    Não é possível que feita esta triste escolha (inconsciente seja ela), em prol da facilidade, se venha depois fazer reivindicações e exigências a alguém ou alguéns a quem foi consentido a gestão da cidade e os quais geriram-na segundo aquilo que sabiam, queriam, e desejaram.

    Verdade que, em grande medida, o povo é o resultado daquilo que fizeram e fazem dele: o desinteresse do povo face às questões sociais, políticas e económicas é muitas vezes fomentada pelos homens do poder (hoje já nem há papas na língua – governar em nome do povo é já assumir um “poder”), que montam cortinas de fumo, com falsas promessas, com mentiras sobre o estado das coisas, com gestões danosas ou subjugadas às necessidades do sistema (e não das pessoas), com a multiplicação das distracções (os três “f” de Salazar: Fátima, Futebol e Fado).

    Mas, o acesso ao ensino aumentou e o analfabetismo recuou, sem que tenha havido um maior acompanhamento das questões da cidade em consequência disso. As “cortinas de fumo” continuam, pouco ou muito, a produzir os seus efeitos… Continua-se a ir a Fátima, a ir ver o Benfica, a dar-se a filmes, séries, talk-shows cor-de-rosa, Nova Gentes, Marias,…

    A ilegitimidade das manifestações, revoltas, motins e revoluções advém daqui: da latência existente entre a qualidade de raciocínio das pessoas e as exigências que elas fazem. Por outro lado, manifestar-se ou revoltar-se não melhora forçosamente esse estado de coisas (ou seja, não promove uma melhor compreensão da realidade social) e instiga sim o confronto e a destruição. Quando aquilo que precisamos, na verdade, é de união e construção…

    Facto é que, independentemente dos meus julgamentos de valor, esses fenómenos existem e continuarão a alastrar-se, cada vez mais e com cada vez mais violência. Serão a colheita daquilo que se semeou. A mudança, quanto a ela, não tem de vir de cima para baixo, nem debaixo para cima, mas debaixo para baixo. E quando os valores e preocupações destes mudarem e forem canalizados, tudo o resto mudará…

  6. Viva hephem.

    Mesmo compreendendo a profundidade que conseguiste transmitir à tua visão da questão, não consigo concordar substancialmente com a iligitimidade na sublevação da sociedade – na maioria dos casos.
    Para concordar totalmente com essa iligitimidade -na maioria dos casos – tinha de anuir que a quem o Zé Esquecido, nesta dita democracia, cede o poder de decisão, podia então tomar todo o tipo de opção social sem que fosse – na maioria dos casos – passível de serem contestadas socialmente. A contestação faz parte do processo vivo de uma verdadeira democracia. A contestação só é negativa quando dá de caras com uma falsa democracia que não ouve, mal sente e não age. A voz dos Zé Esquecidos é a voz da verdadeira democracia… e quando os Zé Esquecidos falam é a democracia que vibra!
    Os Zé Esquecidos só ultrapassam a fronteira da contestação social, que é um sinal vibrante de democracia, para as revoltas, motins e revoluções quando o poder que devia ser o poder do Zé Esquecido deixa de o ser e passa a representar uma demo-cracia, o poder dos outros que não o de todos!
    Nunca existe beleza na destruição, seja ela através da raiva popular ou da delapidação da democracia!

    O problema mor está -na maioria dos casos – ligado a um Zé Povinho que passa a ser um Zé Esquecido que não se lembra das suas responsabilidades de defesa dos seus direitos e dos direitos de defesa obrigatória da democracia, e de um poder que se auto-intitula democrático que deixa de o ser para defender os seus interesses pessoais, privados e corporativos. Estas são duas frentes que se tornam – na maioria dos casos- sempre antagónicas e onde o choque de interesses díspares provoca invariavelmente faísca!

    Será justo uma revolta, uma revolução, a destruição???
    Justa é a Natureza que nos explica que sempre que existe algo que está momentaneamente em excesso e que causa desequilibrios no equilibrio global, os excessos são, por norma, violentamente capados.

    Era bom que o nosso mundo nunca mais tivesse de passar por revoluções, mas é a própria Natureza na sua natureza que nos mostra que a revolução é parte integrante da evolução… infelizmente…

    minhamosca

  7. Companheiro,

    Antes de mais, parabéns. 🙂

    Depois agradeço a tua reposta ao meu comentário porque ela testemunha de que não fui suficiente eficaz naquilo que pretendia transmitir. A “contestação” (em abstrato) pode fazer parte daquilo que considero deveres sociais. Ou não… Isto porque várias são as formas de contestar. A contestação em consciência de causa, que tem por ambição fazer luz sobre as soluções, e não sómente opor exigências, é uma intervenção e uma preocupação social. É inerentemente um dever social e pode (reformulo, vai mesmo) conduzir a sucessos que se traduzem em direitos. Mas este tipo de contestação exige um estudo e um entendimento prévio, e é um comportamento completamente diferente das “manifestações” e “revoltas” que, sendo também “contestações”, tendem a fazer meras exigências. A contestação preocupada passa nomeadamente pelo associativismo (mas não exclusivamente) coisa que em Portugal é uma realidade muito ausente.

    Acrescento que não acredito na Democracia, nem naquela que é exercida indirectamente, nem naquela que é exercida directamente. A Democracia indirecta não é um governo do povo (demos-povo; cracia-governo) mas um governo dos seus ditos representantes. Estes são supostos interpretar a vontade popular mas dai surge um triplo problema: aquilo que resulta da vontade do povo não é forçosamente uma decisão qualitativamente superior (porque, justamente, houve um desinteresse, propositado ou não, pela sua qualidade de raciocínio), a interpretação é feita de acordo com os limites de quem a faz, e não impede que aquele que representa não fuja em grande medida às vontades dos representados. A democracia directa é impossível porque o povo não tem capacidade para constantemente ser consultado (e quando falo em consulta, não falo do recurso ao “voto”) para decisões locais, regionais e nacionais, sobre todas as questões, mais ou menos tecnicas.

    Defendo, a título pessoal, uma dissolução dos paises, Estados ou Nações (os quais são voltados para uma perspectiva ultrapassada, mas ainda hoje enfatizada, dos nacionalismos e patriotismos) em defesa de uma gestão citadina ou regional, próxima do cidadão na qual ele tem melhor consciência dos problemas, melhor noção das soluções, conhece os seus, e pode discutir com eles, criando laços e conhecendo as inter-depêndencias relativas existentes na região.

    Perdoem-me estes dois últimos parágrafos, que foram realizados no intuito de contextualizar os meus dizeres. Que estes sejam comentados numa outra ocasião…

    • Obrigado 🙂

      Ora, acabámos de ser presenteados com um pensar brilhante… mas que ainda poderá demonstrar alguma tracção em relação ao “básico” (Penso eu).

      Mesmo concordando com quase todo o teu “desenho” com ele não consigo concordar. Contra-senso? Talvez, ou talvez seja apenas um assentar das minhas ideias primeiro no “básico” dos básicos.

      Mas este tipo de contestação exige um estudo e um entendimento prévio, e é um comportamento completamente diferente das “manifestações” e “revoltas” que, sendo também “contestações”, tendem a fazer meras exigências.
      É extremamente injusto exigir a todos o mesmo nível de entendimento, nem tal é exequível. A maioria das manifestações surgem espontaneamente devido ao acumular de tensões e não por um desenvolvimento de entendimento sobre as suas causas. A maioria das pessoas reage e age a sugestões que por vezes nem nunca irá entender bem o porquê. É como uma panela de pressão que só dá sinal quando atinge a sua pressão máxima. São por norma reacções instintivas às dificuldades e às injustiças e não necessariamente um reagir por conhecimento de causa. É uma marca do se ser Homem… pois a sua racionalidade tem muitos limites…

      A Democracia indirecta não é um governo do povo (demos-povo; cracia-governo) mas um governo dos seus ditos representantes.
      Só o é quando o Zé passa a Esquecido e se esquece de exigir que os seus governantes – seres não superiores – os governem segundo os seus desígnios, do Zé, e vontades, do Zé. Um representante não é uma perca de representatividade individual desde que o representante seja realmente representativo dessa vontade – algo extremamente raro nos dias de hoje… talvez pela falta de exigência do Zé Esquecido.

      Defendo, a título pessoal, uma dissolução dos países, Estados ou Nações (os quais são voltados para uma perspectiva ultrapassada, mas ainda hoje enfatizada, dos nacionalismos e patriotismos) em defesa de uma gestão citadina ou regional, próxima do cidadão na qual ele tem melhor consciência dos problemas, melhor noção das soluções, conhece os seus, e pode discutir com eles, criando laços e conhecendo as inter-depêndencias relativas existentes na região.
      Belíssimo! E talvez a sociedade tenha de retornar a algo semelhante, mais tarde ou mais cedo. Mas não nos iludamos, isso será uma involução! Irão sempre existir regiões mais ricas e prósperas que outras, que tenderão a ver a sua população aumentar na busca das pessoas por uma melhor qualidade de vida, e a voltar a criar desigualdades entre as regiões, e voltar a gerar novas tensões e teremos provavelmente de voltar a regressar à raiz da democracia, ou algo do género, para desenvolver algum tipo de representação colectiva que não impeça a evolução e o crescimento social e defenda a sua estabilidade. Aí teremos uma vez mais desenvolvido as fronteiras…
      Exemplo, Lisboa… depois da involução para a centralização comunitária…
      -Coitada de Lisboa e dos seus fundadores que hoje em dia são tão mal tratados, talvez por puro desconhecimento ou mesmo por incúria de um pseudo-conhecimento.-
      Reduzindo a escombros as estruturas actuais de governo, como defendes, a mesma Lisboa, situada entre 7 colinas que à primeira vista colocam entraves logísticos, funcionais e estruturais por culpa do seu acidentado terreno, teria a tendência de assumir novamente posição principal entre as demais no terreno que actualmente delimita Portugal.
      Porquê?
      Primeiro porque os nossos antepassados não eram idiotas e muito menos estúpidos… mesmo que socialmente tenhamos a tendência para desvalorizar os antigos e os anteriores… pois Lisboa é banhada pelo maior e melhor porto natural de Portugal. Tem acesso a uma vasta área piscatória de rio e de mar. A Norte de Lisboa estão situados os campos agrícolas mais férteis de Portugal – onde actualmente assentam grande parte dos seus arredores… estas mesmas características tenderiam a fazer crescer Lisboa mais do que, por exemplo, Beja… E voltaríamos ao mesmo… desigualdade, desequilíbrio, fronteiras, guerras, países… História…
      (Explicado da forma mais simplista possível, quase infantil… Um dia destes haveremos de falar mais amplamente sobre o que poderá significar evolução e involução ;))

      minhamosca

  8. Do dia em que nascemos até, espero eu, à hora da nossa morte, encontrar-nos-emos em perpetua construção intelectual e nenhum entendimento que possamos fazer será jamais acabado ou definitivo. O conjunto da espécie humana engloba seres com idades substancialmente diferentes, com limites sensoriais e racionais mais ou menos acentuados, vivendo em meios muitas vezes contrastantes, o que se traduz, consequentemente, em sensibilidades diversas. Como tal, encontrarmos níveis de entendimento diferentes é pois uma fatalidade à qual não podemos escapar e seria desonesto (ou injusto, para utilizar os teus termos) exigir um mesmo grau de entendimento para todos. Em nenhuma ocasião, das minhas precedentes intervenções, tive a arrogância de sugerir semelhante coisa. No entanto, é do meu entendimento que uma pessoa, para poder pronunciar-se devidamente sobre algo, seja apelada a apetrechar-se de algum conhecimento profundo sobre a questão em causa. Esse conhecimento até pode ser relativamente errado (o que acontecerá sempre, de uma maneira ou de outra, por força daquilo que disse no inicio deste texto) mas as bases e o interesse têm de lá estar. O erro relativo, porque é relativo, não consta ser um problema, uma vez que ele diluir-se-á face aos conhecimentos apresentados pelos outros, os quais agirão como paliativos. Aprendemos sempre uns com os outros, não é verdade? Relativamente ao que disseste sobre as “manifestações” e “revoltas” devo fazer o reparo seguinte: aquilo que disseste não se opõe a nada daquilo que disse. Enquanto eu propus emitir um julgamento de valor sobre esses fenómenos (saber se são certos ou errados, justos ou injustos, legítimos ou ilegítimos – foi por aqui que comecei), tu enveredaste por uma explicação das causas. Não foi por mim defendido que essas realidades explodiam de forma expontânea, sem que tenham subjacentes a elas factores tais como a injustiça (citado por ti), o abandono social, a discriminação, a desigualdade. A análise que eu iniciei era de outra natureza e vinha pois no sentido de tentar esclarecer se, independentemente da consideração das causas que tomo por mais ao menos conhecidas, a sua existência tinha alguma racionalidade intrínseca (porque até tem alguma!), se era um caminho a seguir (questão levantada pelo subscritor “Cidadão”) e se era ou poderia ser factor de progresso social (como alguns defendem). E eu manifestei-me contra todas essas hipóteses. Novamente, em meu entender, o progresso social resultante das manifestações, revoltas e revoluções deve ser Relativizado (com um grande “R”) pois que estas nunca acabaram com as classes sociais, nem com as desigualdades e injustiças, e nunca tiveram a preocupação, a meu ver essencial, de forjar cidadãos formados, informados e conscientes que possam ser úteis a si, aos seus e à sociedade em geral. Observo que concebo a sociedade como um templo romano, cujos pilares são o “povo” e o tecto (curiosamente, em forma de triângulo) o chamado “governo”: um só pilar pouco consistente fará desmoronar a integra da estrutura, mais cedo ou mais tarde. Pronunciando-me agora sobre o teu curto comentário àquilo que disse sobre a “democracia indirecta”, devo dizer que discordamos (o que não é mau. Nem bom, tão pouco): uma democracia indirecta, que é exercida por intermediário de representantes, é sempre, por via de facto, uma democracia dos representantes. Mesmo se os representados concordam com as suas decisões e mesmo se estas são exercidas genuinamente no interesse geral. As democracias nórdicas, regra geral, até são saudáveis uma vez que os representantes tendem a agir no interesse geral dos representados. Mas isso não faz dela uma democracia que não seja uma democracia indirecta, um “governo de representantes”. Quando muito, as democracias indirectas são democracias directas pela negativa: os representantes podem fazer “tudo” o que quiserem, excepto aquilo que, pontualmente, o povo tenha apercebido não poder aceitar. Porque, a bom rigor, o povo não está constantemente a controlar todas as medidas que tomam esses senhores… De resto, a democracia indirecta condiciona a sociedade a dois fenómenos que considero graves: à existência de um elitismo de facto (pessoas iguais têm poderes de decisão diferentes sobre outros) e a um desinteresse das pessoas pelas questões da “cidade” (as mesmas pessoas que delegaram a gestão da sociedade à responsabilidade de algumas deixam de sentir a necessidade de se preocupar, e tornam-se intelectual e funcionalmente inaptas nessas questões, o que, a termo, pode abrir brecha a que, progressivamente, esses senhores façam um pouco aquilo que querem). Devo recordar que, mesmo nas sociedades democraticamente mais saudáveis, se fugiu à submissão do Tratado de Lisboa a um referendo? E não será isto prática corrente aquando da construção de uma auto-estrada? E quid de PPPs, discretamente tendenciosas, para a concretização de negócios de construção civil?

    Fico-me por aqui já porque o texto vai longo e já os restantes comentários teus não são de discórdia. Aguardo esse dia, embora, em principio, os conceitos não me pareçam já de todo estranhos. Um último reparo: Se faço “alguma tracção relativamente ao básico”, coloco em ti a responsabilidade de me guiar para o sitio certo. 🙂

    • Imenso!!!

      Novamente absolutamente brilhante!!! Novamente concordo com quase tudo o que escreves… filosoficamente falando… e fico-me por aqui porque uma vez dada entrada num mundo de “se”s o texto ganha tendência a ficar cada vez mais imenso de modo a se conseguir contextualizar pensamentos. Iremos ter tempo, espero eu, para calmamente e com o passar desse mesmo tempo irmos paulatinamente esgrimindo essas construtivas divergências, porque ao ritmo diário que, nos dias que correm, desabrocha nova informação, assunto não há-de faltar para irmos dando uns mergulhos no mundo do entendimento.

      Nos indivíduos, a loucura é algo raro – mas nos grupos, nos partidos, nos povos, nas épocas, é regra. – Friedrich Nietzsche

      P.S: Por favor vai intervindo que o teu pensar é de valor incalculável!!!

      Grande abraço,

      minhamosca
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